sábado, 29 de junho de 2013

ONG Limiar levou 1.700 crianças em adoção para EUA e Canadá


Investigada pela Polícia Federal, organização intermediava irregularmente adoção de crianças. Cada uma “saía” por US$ 9 mil


Gazeta do povo| MAURI KÖNIG
  • Investigada pela Polícia Federal (PF) e pela CPI do Tráfico de Pessoas, a ONG Limiar intermediou em 20 anos a adoção de 1.700 crianças enviadas do Brasil para os Estados Unidos e o Canadá. Agendas e cópias de e-mails apreendidas pela PF comprovam que a ONG recebia US$ 9 mil por criança, a título de doação das famílias adotantes – uma doação compulsória, segundo a CPI. Na hipótese de ter cobrado por todas as adoções, a Limiar teria arrecadado US$ 10 milhões em 20 anos, já descontando a média de 30% de “isenção” mencionada em entrevista de 1999 pela fundadora da Limiar, Nancy Cameron.
Cameron criou a Limiar Brasil em 1984 e depois a Limiar USA, para intermediar a adoção no país. Nesse tempo, levou 331 crianças do Paraná, 24 de Santa Catarina, cerca de 800 de São Paulo e as demais de Pernambuco e Rio de Janeiro.
Irregularidades
A CPI enumera cinco itens que caracterizariam como tráfico de pessoas algumas adoções intermediadas pela ONG Limiar para os Estados Unidos e o Canadá:
1. Inversão do rito normal de adoção. Pela ordem natural do processo, primeiro deveria haver um casal interessado na adoção para depois se localizar uma criança. No caso da Limiar, ocorria o contrário: a ONG tinha um catálogo de crianças para oferecer a casais americanos.
2. A CPI identificou tráfico de influência do representante da Limiar no Paraná, Laudelino de Souza, dentro da Comissão Estadual Judiciária de Adoção (Ceja) e nas instituições onde havia crianças para adoção.
3. Cobrança de doações compulsórias de US$ 9 mil das famílias interessadas na adoção.
4. Lucro financeiro obtido pela Limiar na adoção de crianças brasileiras, proibido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 239. A CPI cita como exemplo o crescimento patrimonial de Laudelino de Souza.
5. Falsidade ideológica da Limiar perante a autoridades oficiais no Brasil e nos Estados Unidos. Lino e a Limiar não eram credenciados na Secretaria de Direitos Humanos nem nos Estados Unidos.
Exoneração com champanhe
Organizações não governamentais que intermediam adoções de crianças brasileiras por casais estrangeiros comemoraram com champanhe a exoneração, dia 26 de março, da coordenadora-geral de Adoção e Substração Internacional de Criança e Adolescente, vinculada à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Patrícia Lamego exercia a função de Autoridade Central Administrativa Federal (ACAF) nas adoções internacionais. O representante de uma entidade italiana credenciada para mandou cópia do decreto de exoneração a outras ONGs.
Representante da Limiar no Brasil, Laudelino de Souza, enviou e-mail entusiasmado para Luciana Matson, diretora executiva da Limiar USA. “Olhe isso, Lu. Você precisa vir urgente ao Brasil. No máximo, chegar amanhã, pois teremos que comemorar com champanhe. Espero que quem assuma no lugar dela tenha mais respeito e não tente dificultar tanto os trabalhos”. Dos Estados Unidos, Luciana responde: “Estou pegando o avião amanhã. Prepare o champanhe. Ela foi demitida ou transferida? Perfeita a hora, Lino. Temos agora que preparar os papéis da AWAA e novas pessoas.” Lino replicou: “É a hora perfeita mesmo. Exonerada, tirada do cargo, transferida.”
Patrícia Lamego era o calcanhar de Aquiles da Limiar e da AWAA, porque restringia o credenciamento desta última desde 1999. Diante dos problemas com a Limiar Brasil e logo após a ratificação da Convenção de Haia pelos Estados Unidos, a Limiar USA vem tentando credenciar a AWAA. “Tem tido muito resistência aos Estados Unidos em Brasília”, disse Lino à CPI. “Existem várias entidades, italianas, alemãs, francesas, atuando em adoção. Só italianas são cerca de nove ou 12. Nós tentamos credenciar uma entidade americana e não conseguimos”, desabafou.
ONG foi alvo de denúncia há 15 anos
Em reportagem de 1999, o jornal Folha de S. Paulo revelou que a ONG Limiar exibia crianças brasileiras em catálogos na internet e cobrava US$ 5.500 para intermediar uma adoção. Eram necessários outros US$ 15 mil, em média, para os gastos da família com passagens para o Brasil, hospedagem e tradução de documentos. A legislação brasileira já era clara quanto à proibição de obter lucros com a intermediação de adoção e oferecer crianças pela internet.
O jornal pediu a um casal norte-americano para se inscrever no site da Limiar. Foi por meio desse casal que a reportagem descobriu que a Limiar cobrava pelas adoções e oferecia um catálogo em vídeo com imagens das crianças. A doação era compulsória. Quando o casal disse, por e-mail, que não tinha condições de fazer a doação, a Limiar interrompeu o envio de novas informações.
À época, o jornal relatou o caso de uma família do Texas que adotou duas crianças no Paraná e sofria ameaças de processo por parte da Limiar caso não pagassem US$ 8 mil. A presidente da Limiar USA, Nancy Cameron (morta em 2003), disse à reportagem que entre 25% e 50% dos casais que fazem adoções pela Limiar não fazem doação.
A Limiar alega ser apenas intermediadora entre as famílias e as crianças postas para adoção. A doação de US$ 9 mil seria para ajudar as famílias na vinda ao Brasil e com os papéis para aprovação na Comissão Estadual Judiciária de Adoção (Ceja), do Tribunal de Justiça do Paraná. A Limiar diz informar às famílias que a adoção no Brasil é gratuita.
FBI vai investigar Limiar
A Polícia Federal americana (FBI) vai investigar as denúncias da CPI do Tráfico de Pessoas de que a ONG Limiar estaria cobrando entre US$ 9 mil e US$ 20 mil de famílias americanas por processo de adoção. A informação foi confirmada à CPI por Walter Kerr, diplomata da embaixada dos EUA em Brasília.
Kerr levou as denúncias da CPI ao embaixador americano no Brasil, Thomas Shanon, que acionou o FBI para analisar as suspeitas. A ONG tem escritórios em quatro estados brasileiros e no Texas (EUA).
Para a CPI, o comércio nessas transações se caracteriza também pelas relações de Laudelino de Souza (conhecido como Lino), representante da Limiar no Paraná, com as instituições que abrigavam crianças mais tarde adotadas. Vice-presidente da CPI, o deputado federal Fernando Francischini (PEN-PR), coloca sob suspeita muitas adoções precedidas de doações em dinheiro vindo dos Estados Unidos. Em abril, a PF apreendeu documentos na casa de Laudelino, em Curitiba. Esses documentos contêm anotações que tipificam os crimes cometidos pela Limiar.
Crime
A Lei 12.010/09 proíbe a relação monetária entre as partes envolvidas na adoção. Já o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece, no artigo 239, que é crime “promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro.” A pena é de reclusão de quatro a seis anos, e multa.
Porém, a contabilidade feita por Lino em agendas e planilhas de computador revelam dezenas de doações a pessoas físicas e instituições que acolhiam crianças adotadas por intermédio da ONG. Segundo sua própria contabilidade, Lino fez 31 doações em dinheiro a 12 instituições entre 1996 e de 2006, somando R$ 11.695,08. Os repasses iam de quantias pequenas a cifras que chegavam a R$ 3.285. Houve ainda duas doações ao Conselho Tutelar de Campo Erê (SC), no total de R$ 270, a primeira em dezembro de 1997 e a segunda em fevereiro de 1999. Em Campo Erê, duas crianças foram adotadas em 1996 e 1998.
Ainda segundo a Lei 12.010/09, eventuais repasses só podem ser feitos via Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente. Contudo, a Limiar também costumava fazer doações em dinheiro em nome das crianças a serem adotadas. Há nove registros de Lino em sua contabilidade, todos para meninas e meninos adotados meses depois.
Há contradições dentro da própria entidade. Em depoimento à CPI, o presidente da Limiar Brasil, Ulisses Gonçalves da Costa, disse que Lino não faz parte da ONG há mais de dez anos e se cobra por qualquer doação “o dinheiro fica com ele”. Lino contesta.
O plenário da CPI deve votar na semana que vem requerimento para que a PF faça os indiciamentos, a quebra do sigilo bancário e cumpra mandados de prisão contra os acusados.
TJ-PR descarta tráfico de influência
O corregedor-geral do Tri­bunal de Justiça do Paraná (TJ-PR), desembargador Lauro Augusto Fabrício de Melo, descarta a possibilidade de tráfico de influência na Co­missão Estadual Judiciária de Adoção (Ceja), como dizem integrantes da CPI. “Ante os fatos noticiados na imprensa, foi instaurada sindicância, para verificação dos processos de adoção internacional apontados no noticiário, constatando-se apenas que o Sr. Laudelino de Souza era a pessoa indicada pela ONG Liminar para representá-la, possuindo, portanto, vínculo apenas a tal organismo, como mero interveniente, e, ao que se sabe, sem poder de influência ou relacionamento com integrantes da Ceja”, diz o desembargador.
Para o corregedor-geral do TJ-PR, não há qualquer dado concreto que respalde a impressão de que as adoções internacionais sigam em ritmo mais acelerado do que as nacionais. “A adoção internacional, que só ocorre após regular processo de destituição de pátrio poder, e constatado desinteresse de casais nacionais na adoção da criança, por lei, tem duração média de 45 dias”, explica o corregedor.
Segundo ele, exige-se estágio de convivência em território nacional por no mínimo 30 dias, com acompanhamento da equipe técnica da Comissão Estadual Judiciária de Adoção (Ceja), que apresenta relatório final ao juiz da respectiva comarca.
“Em seguida, colhe-se a manifestação do representante do Ministério Público, que exerce fiscalização sobre todo o procedimento, e somente após o juiz profere sentença, da qual se comunica a Ceja para expedição dos documentos previstos em lei”, observa o desembargador.
Membro da CPI desconfia de “lugar de engorda”
O representante da Limiar no Paraná costumava levar aos Estados Unidos crianças para visitar a família adotante, segundo ele com autorização do Consulado americano. Eram crianças destituídas do poder familiar e postas para adoção internacional pela Comissão Estadual Judiciária de Adoção (Ceja). Ele tinha autorização do Ceja para levá-las ao exterior, ao invés de os interessados virem ao Brasil para o estágio de convivência no abrigo.
A CPI do Tráfico de Pessoas acredita que Lino tenha levado para fora do país mais do que as cinco crianças que ele admite ter levado antes de concretizada a adoção. Membro da CPI, o deputado Luiz Couto (PT-PB) acredita que elas eram levadas para um “lugar de engorda” nos Estados Unidos, onde eram tratadas para ficarem bonitas e impressionar as famílias adotantes.
Lino disse em depoimento que as famílias costumavam levar os filhos adotados para conhecer outras crianças brasileiras em reuniões anuais na cidade de Bradford, na Pensilvânia. Segundo ele, a entidade contrata grupos de capoeira, exibe filmes e promove atividades para manter as raízes brasileiras das crianças. “Vou a essa reunião para trabalhar com as crianças, e para as crianças me reverem também.”
A agenda de Lino: “Adamo, sete sisters”
Apreendida pela Polícia Federal, a agenda do representante da Limiar no Paraná confirma os repasses de dinheiro a abrigos de crianças mais tarde adotadas por casais americanos, uma relação financeira proibida pela legislação brasileira. Das 12 doações registradas por Laudelino de Souza, três foram à Associação Triunfense de Abrigo e Proteção à Cri­ança, onde estavam abrigados os sete irmãos adotados por uma família americana em 2006. Esse foi o caso que levou a CPI do Tráfico de Pessoas a incluir o Paraná nas investigações.
Em 21 de dezembro de 2004, a agenda traz a seguinte anotação: “Despesa com doação em dinheiro para o lar Triunfo das Crianças, em São João”. Foram R$ 280. Dez dias depois, Lino anotou o número da conta corrente da Associação Triunfense de Abrigo e Proteção à Criança. Ao lado, escreveu: “Adamo, sete sisters. São João do Triunfo”. Dia 20 de dezembro 2005: “200 dólares, São João do Triunfo; 450 reais, cartões de Natal para o set da família”. Abaixo, outra doação de R$ 450. Do lado: “Adamo, 65/05”. Esse era o número do processo da adoção dos sete irmãos pela família Adamo.
“Sinceramente, não lembro desses repasses. Se houve, foi um repasse legítimo da família que adotou e quis fazer uma contribuição para a criança que estava abrigada”, disse Lino à CPI.